Muito comum nós advogados, recebermos consultas referente a possibilidade ou não da realização de atividades com fins diversos aos residenciais ou mais especificamente, fins comerciais.
A Lei nº 4.591/64, chamada de Lei de Condomínios, assim determina:
Art. 10. É defeso a qualquer condômino:
(…)
III – destinar a unidade a utilização diversa de finalidade do prédio, ou usá-la de forma nociva ou perigosa ao sossego, à salubridade e à segurança dos demais condôminos;
O Código Civil Brasileiro, rege, em mesmo sentido, que:
Art. 1336. São deveres do condômino:
IV – dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.
Conforme se observa, há vedação legal clara no sentido da proibição de se dar ao imóvel destinação diversa daquela inicialmente prevista.
Há, ainda, disposição de mesmo teor em algumas Convenções Condominiais, de sorte que é certo, desde já, que por se tratar de um imóvel residencial, não caberá ao proprietário ou inquilino destiná-lo a uso comercial ou industrial.
Eis aqui o cerne da questão, pois cabe esclarecermos se as utilizações pontualmente discutidas são ou não violadores das normas legais.
Seguiremos, perseguindo esse esclarecimento nos tópicos subsequentes.
Ab initio, impõe-se fixar que objetivo precípuo dos regimentos condominiais é preservar a vida pacífica no edifício protegendo o sossego, a salubridade e a segurança dos condôminos e a imensa maioria das convenções condominiais possuem cláusula expressa sobre a proibição de atividades não residenciais no interior do apartamento.
Com esse olhar, entende-se que a cláusula de proibição de atividades que não estritamente residenciais deve ser lida como tendente a evitar a instalação de uma verdadeira empresa no apartamento residencial, e não do mero exercício profissional que não lese o bem-estar dos seus vizinhos.
Ademais, essa vedação precisa ser compatibilizada com as condições individuais, caso a caso, pois há um claro direcionamento do judiciário em entendê-las como ilegais.
A partir da análise de cada caso concreto, com todos os seus detalhes, será possível discernir entre quais atividades são compatíveis e quais são incompatíveis de serem conduzidas no interior de um condomínio edilício.
Há situações que sequer geram dúvidas. Por óbvio, instalar uma indústria em um apartamento residencial compromete o condomínio na medida em que onera as instalações elétricas e gera ruído, incompatível com a convivência condominial, ferindo frontalmente o sossego e salubridade disposto na legislação.
Entretanto, há outras situações não tão evidentes, como a que ora se discute, posto que o limiar entre a proibição ou não é bastante delicado e quase imperceptível.
Fere a finalidade residencial de um imóvel se um juiz de direito que leva seus processos para examinar em casa? Ou o trabalhador autônomo que passa o dia na frente de um computador? Ou a costureira que ziguezagueia com sua máquina de costura? Ou a cozinheira que prepara pratos congelados para reforçar o orçamento doméstico? Ou a moça de televendas que usa seu telefone para conseguir novos clientes para a empresa?
A princípio, em qualquer dessas e de outras situações parecidas, a atividade não-residencial não extrapola os limites das paredes da unidade autônoma, não acarretando qualquer ônus para o condomínio nem prejudica qualquer dos outros moradores.
A questão começa a ficar um pouco mais complicada quando, apesar de praticada na privacidade do imóvel residencial, a atividade gera fluxo de pessoas desconhecidas ao prédio ou implica em onerosidade aos demais condôminos.
Portanto, para concluir acerca da possibilidade ou proibição faz-se necessário uma ponderação sobre os impactos que a atividade irá impor aos demais condôminos.
Veja-se:
A. A atividade promove aumento do fluxo rotativo e diário de pessoas no condomínio?
Se a resposta é positiva, temos direcionamento de que se trata de atividade proibida, pois sobrecarrega os funcionários da portaria/recepção e compromete a segurança. Em situação oposta, se a atividade, ainda que de natureza comercial, não implicar em grande fluxo de pessoas e mercadorias, nada impede que a atividade seja instalada dentro de um apartamento residencial.
Imaginemos o caso de um advogado que tem seu gabinete no apartamento e trabalha em “home office” mas, a partir de certa data, começa a receber clientes em casa. Tal incremento de pessoas pode de alguma forma perturbar os moradores e, mesmo que não gere maiores ônus, deprecia o valor patrimonial do condomínio, caso se torne público e notório que o edifício deixou de ser estritamente residencial ao admitir práticas mercantis.
Outro exemplo dessa hipótese, no período atual, são as locações de unidades imóveis em edifícios residenciais por meio de aplicativos como AirBnb (aplicativo onde qualquer pessoa que tenha um imóvel, cadastra ele para fazer locação por diária), que impõem fluxo rotativo de pessoas estranhas ao condomínio, inclusive ao próprio proprietário, e, por comprometer a segurança e, muitas vezes, sobrecarregar o uso das áreas comuns, não deverão ser suportadas.
Tratou o saudoso Biasi Ruggiero (Em Ruggiero, Biasi – “Questões Imobiliárias”, Editora Saraiva, 1997, página 73), em sua obra, que:
“ A residência há de ser a destinação principal. O morador pode, perfeitamente, ser pessoa que exerce qualquer tipo de trabalho cujo desempenho é compatível com a residência. Há pessoas que se dedicam a aulas particulares, dadas individualmente a alunos, em horários diferentes. Há médicos, advogados, indústrias, comerciantes e outros profissionais que, ocasionalmente, recebem visitas com a finalidade de tratar assuntos ligados aos seus ofícios. Tais atividades são secundárias em relação à residência, que é atividade principal. A residência é a finalidade maior; a prática de alguma atividade profissional é a finalidade menor.”
Portanto, trata-se aqui de proibição de atividades que demandam rotatividade ou alto fluxo de pessoas, pois tais condições comprometem a segurança e a tranquilidade do condomínio residencial. Eventuais pessoas que visitem o morador, ainda que com objetivo comercial, não podem ser entendidas como vedadas, já que receber visitas é atividade normal de qualquer morador e não tem o condão de gerar incômodos ou inconvenientes aos condôminos, de modo geral. Sobretudo em época de PANDEMIA.
B. A atividade implica em onerosidade excessiva ao condomínio?
Se a resposta é positiva, mais temos direcionamento de que se trata, a princípio de atividade proibida, pois não se pode impor aos demais condôminos o ônus de suportar custos decorrentes das atividades laborais deste ou daquele condômino. Em situação oposta, se a atividade, ainda que de natureza comercial, não implicar em custos extras ao condomínio, ou até mesmo se for possível individualizá-los, de modo a serem suportados exclusivamente pelo interessado, nada impede que a atividade seja instalada no apartamento residencial.
Temos como exemplo se um dentista que pretendesse utilizar seus equipamentos para realizar atendimento em seu apartamento, ainda que com fluxo restrito de pessoas, mas com o agravante de que provocaria um consumo maior de água, onerando as despesas gerais.
Assim, cabe refletir que a proibição da instalação de uma empresa ou comércio dentro de uma unidade residencial não pode ser confundida com a proibição do exercício profissional dentro de uma unidade residencial, caso contrário o “home office”, que é trabalhar dentro de casa, mesmo sem que ali se receba clientes, estaria desviando a finalidade da edificação. Mas, sempre, que tais atividades precisam ser compatibilizadas com a preservação da segurança e tranquilidade do condomínio.
Portanto, cada situação, em última análise, precisa ser realizada sob a ótica das modernas relações que se estabeleceram em nossa sociedade.
Com o avanço da internet e a criação de ferramentas que permitem profissionais trabalhar remotamente, é muito comum ver pessoas fugirem do trânsito e da violência urbana para instalar seu home office, com conforto, segurança e praticidade. De outro lado, a crise econômica e financeira impele alguns outros a precisarem se valer de trabalhos artesanais, tais como os que aqui se discute, para preencher a renda familiar.
Cabe, por fim, citar uma contribuição de Francisco Eduardo Loureiro nos comentários ao Código Civil organizados pelo Ministro Cezar Peluso e publicado pela Editora Manole:
“Deve o condomínio respeitar a destinação de sua unidade autônoma, não podendo usá-la para fins comerciais ou empresariais, se previsto o fim residencial, nem vice-versa. Tolera-se, porém, o uso misto, ainda que vedado pela convenção, desde que os valores tutelados pelo legislador — sossego, segurança, salubridade — não sejam atingidos nem os equipamentos comuns — elevadores, portaria, água — sobrecarregados. São os casos de alguns professores que ministram aulas particulares, ou de advogados que recebem poucos clientes ou costureiras que fazem algumas provas de roupas, ou prestadores de serviço em geral que usam a unidade para desenvolver suas atividades (…)”.
Evidente que, se não ferirem os preceitos da vida em condomínio, não comprometendo os preceitos legais já atinados quanto a segurança e sossego, tampouco onerosidade excessiva, torna-se desnecessário qualquer movimento para impedi-los de exercer suas atividades laborais.
E, considerando ainda o bem comum, pautando-se pela preservação da convivência harmônica, havendo meios possíveis para individualizar eventuais onerosidades impostas pela atividade laboral, cabe ao condômino interessado suportá-las e, aos demais, naturalmente, não deverá restar oposição, posto que não mais estarão sendo incomodados ou prejudicados. Em outras palavras, havendo essa conciliação, estaremos diante do atendimento dos interesses de ambos os polos da questão posta, que é a melhor das hipóteses.
Não há uma posição jurisprudencial uníssona e indiscutível, mas o que se observa, de modo geral, é o acolhimento do entendimento de proibição da atividade comercial quando há ofensa aos direitos tratado anteriormente, ou seja, compromete a segurança e o sossego do condomínio pelo aumento do fluxo de pessoas ou quando há onerosidade aos demais condôminos. Em oposto, quando não há ofensa aos citados elementos, o entendimento jurisprudencial é no sentido de permitir a realização das atividades.
O Tribunal de Justiça de São Paulo já reconheceu o direito de desenvolver atividades empresariais dentro de apartamento residencial:
Os réus, um casal de escritores (ele é jornalista; ela, editora), estabeleceram na mesma unidade em que residem a empresa Capitular Editora, e, pelo que se apurou até aqui, tal empresa não altera a destinação da unidade. É ela residência do casal; casal que, a exemplo de outros, traz serviço para casa e o executa em silencioso computador doméstico. Não há na casa dos agravados máquinas gráficas — além disso, vizinho nenhum se queixou de ruídos, de movimentação de pessoas, algum inconveniente. Pelo contrário, asseguram que não há tais transtornos. (AI232.984-4/1).
AULAS PARTICULARES – Aulas ministradas por condômino em seu apartamento – Interdição pretendida dessa atividade – Inadmissibilidade – Ato não excluído pela convenção condominial nem pelo regulamento – Exercício, ademais, sem qualquer anormalidade ou abuso – Procedência do interdito proibitório. Se não estão excluídas pela convenção de condomínio ou pelo seu regulamento e se exercidas sem qualquer anormalidade ou abuso, pode o condômino ministrar aulas particulares em seu apartamento”. (Apelação Cível nº 170.326)
Em sentido oposto, todavia, oriundo da mesma interpretação, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro proibiu a realização de atividades empresarias por não comprovar o uso residencial, mas tão somente o comercial, somado ao fato do porte significativo da atividade ofender aos direitos dos demais condôminos:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. DIREITO DE VIZINHANÇA. CONDOMÍNIO RESIDENCIAL. UTILIZAÇÃO COMERCIAL. VIOLAÇÃO DA CONVENÇÃO CONDOMINIAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA, DETERMINANDO QUE OS RÉUS SE ABSTENHAM IMEDIATAMENTE DE UTILIZAR O IMÓVEL PARA FINS NÃO RESIDENCIAIS, RESTANDO VEDADO O EXERCÍCIO DE ATIVIDADE COMERCIAL NO LOCAL, SOB PENA DE MULTA ÚNICA NO VALOR DE R$ 50.000,00. IRRESIGNAÇÃO DOS RÉUS.
Apesar dos argumentos trazidos pelos réus, a prova produzida nos autos é clara no sentido de que no imóvel funcionava empresa de projetos de arquitetura, decoração e assessoria técnica, com 10 funcionários, figurando os réus como sócios. Os recorrentes se insurgem contra a sentença que simplesmente declarou o óbvio, ao determinar tão somente o cumprimento da convenção condominial, que veda a utilização das unidades para fins não residenciais. Não há dúvida de que é possível o exercício de atividade profissional na residência; no entanto, há de se observar a destinação do imóvel, bem como os direitos e deveres dos condôminos, coibindo-se eventuais abusos, conforme o disposto nos artigos 1335 e 1336, do Código Civil. No caso em tela, comprovou-se que a atividade dos réus gerou incômodos aos vizinhos, assim como afetou a segurança do edifício, em virtude do intenso movimento de pessoas estranhas no condomínio. Demonstrada a utilização do imóvel de forma indevida e desvirtuada da vocação edilícia, correta a imposição da multa cominatória imposta. Multa que não se mostra incabível ou excessiva, já que é o meio adequado a incutir na parte ré o desejo de cumprir a ordem judicial, e respaldada pelo artigo 461, § 5º do CPC, bastando que os recorrentes acatem a decisão judicial para afastar sua cominação, só se sujeitando ao pagamento aquele que não obedece à decisão, já que ele é o senhor do prejuízo que lhe atingirá, pois o peso da multa é diretamente proporcional à resistência no cumprimento da decisão. Sentença clara e objetiva, sendo evidente que atividades que não violem o uso residencial da unidade não poderão ser coibidas com a incidência da multa arbitrada. Precedentes desta Corte. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO, NA FORMA DO ART. 557, CAPUT, DO CPC. (TJ-RJ – APL 2031551020098190001. Relator: Des. André Ribeiro, Sétima Câmara Cível. 26/07/2012)
Conclusão
De todo o exposto, podemos, antes de qualquer outra conclusão, elucidar que há que se considerar cada situação, caso a caso.
Não existem regras estáticas, pois o Direito é construção interpretativa e cultural cuja aplicação bem-sucedida precisa de adequação ao caso concreto, pautada pelo bom senso.
Desde que preenchidas certas condições objetivas é possível a realização dessas atividades sem ferir a Convenção do Condomínio, por estarem restritas ao âmbito das respectivas unidades, que não perdem sua finalidade principal de residência, especialmente porque as atividades laborais são desempenhadas exclusivamente pelos próprios moradores.
Consigno, então, as condições objetivas a serem respeitadas:
E na hipótese da realização de trabalhos como propostas comerciais, elaboração de relatórios e laudos técnicos, estudos de casos de clientes configura desrespeito ao Código Civil e/ou ao Regimento/Convenção do Condomínio como desvirtuação da função residencial?
Considerando que o trabalho eminentemente intelectual realizado pelo morador demanda gastos extras aos demais condôminos, desde que não implique em alta rotatividade de clientes, não ofende a Convenção do Condomínio.